A Nefasta Hiperdemocracia dos Nossos Tempos
Ninguém, creio eu, deplorará que as pessoas gozem hoje em maior medida e número que antes, já que têm para isso os apetites e os meios. O mal é que esta decisão tomada pelas massas de assumir as actividades próprias das minorias, não se manifesta, nem pode manifestar-se, só na ordem dos prazeres, mas que é uma maneira geral do tempo. Assim (...) creio que as inovações políticas dos mais recentes anos não significam outra coisa senão o império político das massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo pela lei. Ao servir a estes princípios o indivíduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina difícil. Ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica podiam atuar e viver as minorias. Democracia e Lei, convivência legal, eram sinónimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa actua directamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos.
É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a pessoas especiais o seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que, no final de contas, com todos os seus defeitos e vícios, as minorias dos políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos que ela. Agora, por sua vez, a massa crê que tem direito a impor e dar vigor de lei aos seus tópicos de café. Eu duvido que tenha havido outras épocas da história em que a multidão chegasse a governar tão directamente como no nosso tempo. Por isso falo de hiperdemocracia.
É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a pessoas especiais o seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que, no final de contas, com todos os seus defeitos e vícios, as minorias dos políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos que ela. Agora, por sua vez, a massa crê que tem direito a impor e dar vigor de lei aos seus tópicos de café. Eu duvido que tenha havido outras épocas da história em que a multidão chegasse a governar tão directamente como no nosso tempo. Por isso falo de hiperdemocracia.
Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas'
1 Comments:
Embora concorde com a ideia de que o comum dos mortais de hoje se transformou num político de bancada, e que a sua importância ultrapassa em larga medida o seu contributo para um sistema político que funcione, acho que, ainda assim, é dada muita importância à pressão exercida pelas massas. Não creio que haja uma hiperdemocracia, mas há uma democracia com graves deficiências coronárias, porque se insiste em usar determinadas veias para que o sistema funcione e depois não estamos preparados para a sua falência. Acho que a importância desmesurada a que aludi é perfeitamente conciliável com a capacidade de manipular mais facilmente as massas que hoje existe. Os fenómenos de perfeita alienação e de unanimismo são terríveis (atente-se no caso da carreira da selecção nacional no Euro 2004), pelo que as massas são indispensáveis para as tentativas de governo (com letra pequena que para aí andam). Em suma, não acho que seja uma hiperdemocracia, acho que pela sua banalização, massificação e redução ao mínimo de interesse, é mais uma hipodemocracia.
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